Durante toda minha infância, eu dizia "não" mesmo quando queria dizer "sim". Usava o não como uma palavra de apoio, uma maneira de começar a falar. Minha mãe: "Vou sair para fazer compras; algo que você gostaria para o jantar?". Eu, enérgico: "Não", acrescentando imediatamente: "Sim, estou a fim de ovos fritos ou sei lá o quê". Os adultos tentavam me corrigir: "Então, é sim ou não?". "Não, é sim", eu respondia. Entendi esse meu hábito muito mais tarde, quando li "O Não e o Sim", de René Spitz (ed. Martins Fontes). No fim da faculdade, Spitz era um dos meusautores preferidos, o único, ao meu ver, que conciliava a psicanálisecom o estudo experimental do desenvolvimento infantil. No livro, pequeno e crucial, Spitz nota que, nas crianças, o uso do "não" aparecepor volta do décimo oitavo mês de vida, logo quando elas costumam falarde si na terceira pessoa, como se precisassem (e conseguissem, enfim) se enxergar como seres distintos dos outros. Para Spitz, a aquisiçãoda capacidade de dizer "não" é um grande evento da primeira época davida: a conquista da primeira palavra que serve para dialogar e não sópara designar um objeto. Mas, cuidado, especialmente no segundo ano devida, o "não" teimoso da criança não significa que ela discorde do queestá lhe sendo proposto ou imposto: a criança diz "não" para afirmarque, mesmo ao concordar ou obedecer, ela está exercendo sua própriavontade, a qual não se confunde com a do adulto.
Em suma, durante muito tempo, eu persisti na atitude de meus dois anos. Mais tarde,consegui me corrigir. Mas em termos; sobrou-me uma paixão pelas adversativas: mal consigo dizer "sim" sem acrescentar um "mas" que limita meu consentimento. É um jeito de dizer que aceito, mas minha aceitação não é incondicional. "Vamos ao cinema?". "Sim, mas à noite, não agora." O uso do sim e do não, no discurso de cada um de nós, pode ser um indicador psicológico valioso. Mas, para isso, é preciso distinguir entre "sim" e "não" "objetivos", que têm a ver com a questão da qual se trata (quero ou não tomar café ou votar nas próximas eleições), e "sim"e "não" "subjetivos", que são abstratos, ou seja, que expressam uma disposição de quem fala, quase sem levar em conta o que está sendo negado ou afirmado. Se o "não" subjetivo é um grito de independência, o "sim" subjetivo é uma covardia, consiste em concordar para evitar os inconvenientes de uma negativa que aborreceria nosso interlocutor.
Alguns exemplos desse "sim" covarde (e, em geral,objetivamente mentiroso). "Respondeu à minha carta?" "Sim, já mandei.""Gostou de minha performance?" "Sim, adorei." "Quer me ver de novo?""Sim, te ligo amanhã." Mas também: "Você vai assinar a petição para expulsar os judeus do ensino público?" "Claro, claro, estou assinando."
Acontece que dizer "não" é arriscado. A confusão com o outro, aquela confusãoque ameaça a primeira infância e contra a qual se erguia nosso "não"abstrato e rebelde, é substituída, com o passar do tempo, por mil dependências afetivas: "Desde os meus dois anos, não sou você, não meconfundo com você, existo separadamente, mas, se eu perder seu amor (sua amizade, sua simpatia, sua benevolência), quem reconhecerá que existo? Será que posso existir sem a aprovação dos outros?". Em suma, o sim subjetivo é um consentimento abstrato (o objeto de consensoé indiferente e pode ser monstruoso), pois o que importa é agradar ao outro, não perder sua consideração. A necessidade narcisista de sermos amados nos torna covardes e nos leva a assentir.
Por sua vez, nossa covardia fomenta explosões negativas, tanto maisviolentas quanto mais nossa concordância foi preguiçosa. À força dedizer "sim" para que o outro goste de mim, eu corro o perigo de meperder e, de repente, posso apelar à negação abstrata, espalhafatosa eviolenta, só para mostrar que não me confundo com o outro, penso com aminha cabeça.
Bom, Spitz tinha razão, o uso do não e do sim permitemo diálogo humano. Mas é um diálogo que (sejamos otimistas) nem sempre tem a ver com as questões que estão sendo discutidas; ele tem mais aver com uma necessidade subjetiva: digo "não" para me separar do outro ou digo "sim" para obter dele um olhar agradecido. Nos dois casos, tento apenas alimentar a ilusão de que existo.
Muito interessante. Gostei.
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